Nasci numa manhã de segunda-feira espremida entre o natal e o ano novo. Os meus pais, avós, tios e parentes mais chegados me olhavam de cima sem nenhuma discrição. Era o caçula de uma família de mais de vinte netos e o primogênito de outra que mais tarde faria dez. A primeira impressão do mundo estava meio turva e tinha cheiro de éter, mas podia sentir o sol do verão recém-chegado.
Enquanto nadava no líquido amniótico do útero da minha mãe, o Brasil lançava uma nova constituição - mais livre, democrática e cheia de garantias, além disso, iríamos eleger um segundo civil à presidência da república depois do regime militar. No mundo, o Muro de Berlim estava prestes a cair e a unificação da Alemanha dava contornos a uma nova sociedade. A tecnologia começava a ajudar o mundo a se globalizar e a idade da indústria dava lugar à idade da informação.
Por aqui, os meus pais casaram e foram morar juntos para me esperar. Minhas avós tiveram que re-configurar às suas casas. Para uma, o início de uma nova família, para a outra, a formação quase definitiva dos seus sucessores. Nasci quando o mundo - local e global - parecia mudar de forma, mas fiquei sem conhecer o contorno do que ainda há pouco estava ali.
Com o tempo, fui percebendo que toda a estabilidade que me rodeava e a constância do que se movia no mundo eram frutos da história de milhares de pessoas, desde Gorbachev e Reagan até os militantes das Diretas Já. Desde os meus avôs até os meus pais. Nasci quando o molde de tudo o que vivo já estava pronto. Sou um dos produtos de todo esse arranjo.
De lá pra cá, as minhas impressões me encaminharam para o que sou. E são estas impressões que eu vou contar por aqui, cada uma com uma cor, uma figura e um motivo diferente.